sábado, 28 de maio de 2011

Força de vontade - (fragmento).




    Recuou o copo de vinho que eu lhe oferecia; depois também não quis aceitar um cigarro. Não bebia, não fumava, não tinha nenhum vício. Tinha uma cara gorda e mole de padre, e falava com precisão sobre o custo da vida em São Paulo. 

     Contou-me por exemplo que seu pai, homem de 80 anos, que mora na Quarta Parada, vai toda semana comprar carne em Mogi das Cruzes, onde é mais barata e mais bem servida.
 
     - Lá em casa comemos boa carne todo dia -- disse ele com ênfase.
 
     Não, não era casado - morava com os pais, que sustentava com seu trabalho. "Aliás - me disse subitamente, com um brilho nos olhos e as mãos trêmulas como quem toma coragem para fazer uma confissão sensacional - aliás este foi o primeiro ideal que me propus a realizar na vida. E realizei. Agora estou realizando o último dos meus três ideais."


 (...)

     E então me explicou que seu sistema era este: para cumprir cada um de seus três ideais, pusera ele mesmo um obstáculo diante de cada um. Como tinha desde criança muita vontade de ir ao Rio, resolvera não o fazer enquanto não cumprisse seu ideal número 3 - isto é, enquanto não visitasse pelo menos um país estrangeiro. O mesmo fizera em relação aos outros dois ideais. Por um momento tive a impressão de que ia me contar qual tinha sido a promessa que fizera em relação aos outros dois ideais -- mas creio que achou que já se abrira demasiado comigo. Talvez o desanimasse minha cara meio sonolenta depois do vinho tinto do almoço, naquele dia quente. 

     Pouco depois ele seguiu, com o grupo de turistas, para visitar as quedas e ir ao lado argentino. Só o vi depois do jantar e, como eu estava muito bem disposto, me aproximei dele. Eu estava numa roda em que se bebia alegremente uma boa "caña" paraguaia e insisti para que viesse tomar um cálice: -- "Afinal você deve estar contente hoje, precisa comemorar. Você realizou o terceiro e último ideal de sua vida  - e em duplicata: visitou dois países estrangeiros!" 

     Embora ele recusasse o convite, sentei-me um momento a seu lado.
 
    
- Sim - disse ele.- Eu provei minha força de vontade: realizei tudo o que prometera a mim mesmo um dia. E foi duro: tive de passar muitas necessidades e me esforçar muito. Quando eu era rapazinho, não tinha força de vontade. Mas hoje tenho a prova de que qualquer homem pode ter muita força de vontade. É uma coisa formidável. 

     Voltei para a roda, onde se bebia e se contavam anedotas. Logo depois resolvemos todos sair para dar uma volta de carro. Convidei o homem da força de vontade - havia um lugar no carro. Ele não aceitou. Ficou ali no saguão do hotel - e quando voltei para apanhar minha lanterna, surpreendi a expressão de seu rosto: estava sério, triste e ao mesmo tempo com um ar tão aparvalhado e tão vazio como quem não tivesse coisa alguma a fazer na vida e acabasse de descobrir isto. 




 Rubem Braga 

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