terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

 Vocações 





Todos diziam que a Leninha, quando crescesse, ia ser médica. Passava horas brincando de médico com as bonecas. Só que, ao contrário de outras crianças, quando largou as bonecas não perdeu a mania. A primeira vez que tocou no rosto do namorado foi para ver se estava com febre. Só na segunda é que foi carinho. Ia porque ia ser médica.

Só tinha uma coisa: não podia ver sangue.


- Mas Leninha, como é que...

- Deixa que eu me arranjo.


Não que ela tivesse nojo de sangue… desmaiava. Não podia ver carne mal passada. Ou Ketchup. Um arranhãozinho era o bastante para derrubá-la
Se o arranhão fosse em outra pessoa ela corria para socorrê-la -era o instinto medico-, mas botava o curativo com o rosto virado.

- Acertei? Acertei?
- Acertou o joelho. Só que é na outra perna.
Mas fez vestibular para medicina, passou e preparou-se para começar o curso.

- E as aulas de anatomia, Leninha? E os cadáveres?
- Deixa que eu me arranjo.

Fez um trato com a Olga, colega desde o secundário. Quando abrissem
um cadáver, fecharia os olhos. A Olga descreveria tudo para ela.
- Agora estão tirando o fígado. Tem uma cor meio….
- Por favor, sem detalhes…

Conseguiu fazer todo o curso de medicina sem ver uma gota de sangue.
Houve momentos em que precisou explicar os olhos fechados.
- É concentração professor..

Mas se formou. Hoje é médica, de sucesso. Não na cirurgia, claro. Se
bem que chegou a pensar a convidar a Olga para fazerem uma dupla cirúrgica, ela operando com o rosto virado e a Olga dando as coordenadas.
- Mais pra esquerda...Aí agora corta!

Está feliz. 
Inclusive se casou, pois encontrou sua alma gêmea. 
Foi num aeroporto. No bar onde foi tomar um cafezinho enquanto esperava a chamada para o embarque, puxou conversa com um homem que parecia muito nervoso. – Algum problema?_ perguntou, pronta para medicá-lo.
- Não_tentou sorrir o homem_ É o avião…
- Você tem medo de voar?
- Pavor. Sempre tive.
- Então porque voa?
- Na minha profissão, é preciso.
- Qual é a sua profissão?
- Piloto.
Casaram-se uma semana depois.


VERÍSSIMO, Luís Fernando. A mãe de Freud. Círculo de Livro, 1985




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